Sem maiores expectativas, fui assistir o novo filme do Karim Aïnouz, em codireção com Marcelo Gomes. Karim é responsável por dois dos melhores filmes nacionais da década (Madame Satã e O Céu de Suely) e Marcelo dirigiu o cultuado Cinema, Aspirinas e Urubus (que eu não curti tanto). Se o filme fosse só do segundo, talvez eu nem tivesse assistido. Ainda bem que a escolha pesou por causa do primeiro nome.
Numa sessão cheia, o que aconteceu só tem uma explicação: a mágica do cinema. Os créditos finais subiram e ninguém levantava das cadeiras ou sequer faziam comentários com pessoas do lado. A reação era de total perplexidade. Aconteceu, naquele momento, um respeito mútuo entre a tela e os espectadores que eu nunca presenciei. Fez-me reafirmar o quanto eu amo o cinema. Foi de arrepiar.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (que título lindo) mistura a linguagem do documentário com a linguagem da ficção.
Um geólogo viaja e durante os sessenta dias de estrada percorrida, escreve para a amada deixada para trás, contando sobre as pesquisas que fez, as pessoas e os lugares que conheceu e principalmente, fazendo um relato sobre o profundo processo de autoconhecimento pelo qual ele passou.
Os relatos são ilustrados com imagens que imitam o poético formato de Super 8, que traz consigo a atmosfera de filme caseiro ou de registros documentais que se fazia na década de 60.
O protagonista sequer aparece em tela. A leitura dos escritos é feita por Irandhir Santos (de Besouro) com tanta emoção que a impressão que ficou foi a de que conhecemos o personagem, sem nunca tê-lo visto. Em momentos emocionantes, ele entrevista moradores da região, perguntando-lhes qual o ideal de vida deles. Os sonhos almejados são medíocres, mas demonstra a humildade daqueles moradores e o quanto eles pedem pouco para se considerarem felizes. A definição de “uma vida de lazer” é tocante.
Os depoimentos são como memórias, crônicas e declarações de amor do povo, sem o rebusco de Marisa Monte. Em alguns momentos, tive a sensação de estar ouvindo Roberto Carlos a 200 Km por hora. Mas a música que toca é ainda mais brega que isso, mas que, no contexto, fica bonita, melancólica.
Numa sequência, o geólogo relata uma de suas aventuras amorosas, oriundas de enorme carência e solidão, na qual só há fotos e sons de lugares. Nem ele ou a prostituta aparecem, mas eu podia jurar que vi toda a situação acontecer.
Os diretores mesclaram ficção e realidade com tamanha maestria e sutileza que não se sabe onde termina um e começa o outro. Ousaram na experimentação de linguagem, na montagem de sequências justapostas, no jogo de composição de sons e sensações, no tratamento arriscado das imagens e na confiança de que tinham um roteiro maravilhoso em mãos. Fizeram um filme que traduz em som e imagens tudo o que o cinema é capaz de fazer, com poesia e inventividade.
Com a chegada dos planos finais, a sensação era de alma lavada. A mensagem foi passada. A imersão naquela jornada e todas as experiências e dificuldades que o protagonista passou foram válidas, para ele e para todos que o assistiram.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é uma aula de narrativa e de composição de imagens.
Isso é o que eu chamo de originalidade. Isso é que eu chamo de arte.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo
(idem, Brasil, 75 minutos, 2009)
Dir.: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes
Nota 9,6
Horários do filme, no FIC Brasília: sábado 14/11, às 18:00; domingo 15/11, às 15:00.
ERRATA: no meu post sobre o filme Parque Vía, eu havia dito que a sinopse fornecida pelo FIC entregava o filme. Na verdade, as sinopses divulgadas são de responsabilidade dos produtores do filme. Então, lá está feita a correção.
4 comentários:
você precisa assistir Os Famosos e os Duendes da Morte! outro brasileiro muuito bom do festival! ;)
Ele viu, Marina!! Eu vi com ele e gostei muito.
Ah, Fred, perdi esse, cheguei bem atrasada. E hoje vou perder ECONOMIC HITMAN, to triste. Será que tem como baixar? :~
ERRATA
Perdi O Homem Que Engarrafava Nuvens. :~~~
Esse ainda vou ver \o\
Marina, eu assisti Os Famosos...
A crítica já está no blog. É muito bom também.
Celina, Economic Hitman não deve vir para o Brasil. Ainda não encontrei para baixar. Quem sabe um dia... E O Homem que Engarrafava Nuvens tem estreia marcada para janeiro, inclusive no Academia.
Beijos!
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