Para aqueles que acompanharam a novela de Dias Gomes, imagino que a espera pela adaptação cinematográfica de O Bem Amado deva estar sendo vista com desconfiança, afinal, refilmar uma obra tão boa e com personagens ainda tão presentes no imaginário popular é tarefa das mais ingratas.
Ao mesmo tempo, Guel Arraes – diretor do filme – já saiu com a vantagem de ter em mãos uma história que, boa ou não, tem potencial de sobra para atrair o público, ainda mais numa época muito pertinente para se pensar e discutir política no Brasil.
Aliás, finalmente o oportunismo foi usado de forma saudável e sem intenções (claras) de influenciar o voto dos eleitores em ano de eleição e de forma melodramática e apelativa como certa produção lamentável o fez em janeiro deste ano.
O Bem Amado tem como personagem principal o antológico Odorico Paraguaçu, prefeito do município de Sucupira, na década de 1960, quando então o Brasil passava por mais uma de suas crises políticas, durante o governo de Jânio Quadros.
Numa cidade onde nada importante acontece, a principal meta do prefeito passa a ser a inauguração de um cemitério, cujas obras suspeita-se que sejam superfaturadas. O problema é que há muito tempo ninguém morre por lá e Odorico precisa cada vez mais de um “voluntário” para a inauguração, à medida que uma revolta popular – liderada pelo seu principal opositor, o dono do único jornal da cidade – está prestes a eclodir.
Com a ajuda do secretário palerma Dirceu Borboleta e das três irmãs Cajazeiras, com as quais mantém relações bem próximas, Odorico usará de todos os artifícios disponíveis – inclusive contratando o foragido Zeca Diabo, responsável pela morte do prefeito anterior de Sucupira – para acabar com o “recesso necrofílico” e abafar com as suspeitas de desvio de verba pública.
Em meio a tudo isso, há ainda espaço, ainda que pequeno e desnecessário, entre a filha do prefeito e o jornalista comunista Neco. É ele o narrador da história e tentará, inclusive, provar por a+b, de maneira divertida e em formato de mockumentary (falso documentário) o porquê o prefeito de Sucupira teve influência decisiva para o fracasso do governo de Jânio Quadros (!).
Imprimindo seu estilo cordelístico, humor peculiar e diálogos cheios de joguetes e raciocínios (i)lógicos, Guel Arraes trás para O Bem Amado o mesmo ritmo de O Auto da Compadecida e principalmente Lisbela e o Prisioneiro: lá estão a mocinha filha do mandante da cidade que terá um romance com o mocinho rebelde; o secretário capachão; a amante vingativa; além da mesma trilha brega-pop-nordestina-repaginada de Lisbela, com direito a Mallu Magalhães cantando música de Vanessa da Mata (!!) e repeteco de Caetano Veloso e Zé Ramalho.
Assim como Woody Allen faz no mundo e Amácio Mazzaroppi fez no Brasil, Guel vem construindo sua carreira com estilo repetitivo, mas muito próprio, que tem dado certo e ao que parece, ainda dará por muito tempo. Se é assim e se seus filmes continuam divertindo o público com qualidade, que mal há nisso?
O Bem Amado chega recheado de clichês e previsibilidades, mas não há nada mais coerente que isso, ainda mais quando se trata de uma adaptação de novela e cujo assunto é a estereotipada e banal política brasileira. Desta forma, até as interpretações exageradas soam pertinentes.
Marco Nanini acrescenta (ou não, já que ele já vinha interpretando o mesmo personagem no teatro) à sua invejável carreira mais uma interpretação memorável, conseguindo trazer para si um personagem que parecia impossível de ser interpretado por outra pessoa que não fosse Paulo Gracindo (o Odorico da novela). Seu discurso mole, incompreensível e abarrotado de neologismos antológicos é responsável por arrancar gargalhadas do público.
Ao seu lado e com igual talento e graça, estão Andrea Beltrão, Zezé Polessa e Drica Moraes como as espevitadas irmãs Cajazeiras. Só é uma pena que Matheus Nachtergaele não tenha conseguido fazer um Dirceu Borboleta à altura daquele que fez Emiliano Queiroz.
Por fim, esta nova velha roupagem para O Bem Amado cumpre o seu propósito e dá o seu recado. O brasileiro, se tudo correr como o previsto, lotará os cinemas para rir (muito) da própria desgraça. Sucupira ainda é o retrato do Brasil, infelizmente. Lá não há santos: nem o coveiro, nem os jovens revolucionários, nem os políticos e muito menos a imprensa. É cada um por si... e salve-se quem puder.
(idem, Brasil, 105 minutos, 2010)
Dir.: Guel Arraes
Com Marco Nanini, Andrea Beltrão, Matheus Nachtergaele, Zezé Polessa, Drica Moraes, José Wilker, Caio Blat, Maria Flor