Gaspar Noé já havia chocado o mundo do cinema em 2002, com seu polêmico (e de muito mal gosto) Irreversível, no qual ele explorava cenas fortes de estupro. Apedrejado por uns e ovacionado por outros, encontrou recepção semelhante com seu novo trabalho, Enter The Void, que estreou no Festival de Cannes em 2009, mas só começou a carreira um ano depois, não tendo, até hoje, alcançado o circuito brasileiro.
A grande vantagem deste para Irreversível é que o que atraía a atenção para aquele era uma fator vazio (cenas chocantes), enquanto que neste os fatores patentes são os técnicos – especialmente a direção de fotografia – e os ideológicos (através do roteiro).
Nascido na Argentina e graduado na França, Noé trabalhou no projeto por cerca de 20 anos. A intenção era discursar sobre a experiência do quase-morte, através de uma visão subjetiva. A curiosidade sobre o assunto foi tanta, que o diretor declarou que ele mesmo já tentou várias vezes “sair” do próprio corpo, através de experiências de privação do sono, hipnose e até substâncias ilícitas. É com esta vibe alucinógena que ele desenvolveu todo o filme.
A própria abertura já testa os nervos dos espectadores, com um profusão absurda de cartelas de créditos, numa gama imensa de fontes e cores de letreiros, num resultado que Quentin Tarantino definiu como a melhor abertura de filme da história. Realmente, é muito boa, mesmo eu não achando que seja a melhor. Mas uma coisa já deixa claro: se você é epiléptico ou sofre de enjoo, não assista o vídeo.
A história se inicia num destes apartamentos minúsculos de algum gueto de Tóquio, onde moram os irmãos Oscar e Linda. Ele trabalha como traficante de pequeno porte e ela como stripper em uma boate. Ambos sofreram um trauma na infância, quando sobreviveram ao acidente de carro que matou seus pais. Oscar jurou, então, cuidar da irmã para o resto da vida – e até depois dela.
Viciado em DMT, alucinógeno que supostamente provoca o efeito de “saída” do corpo, Oscar se mete em encrencas que culminarão com sua morte.
Até este momento, a visão que temos da história já é subjetiva, através dos olhos de Oscar. Já ali a movimentação de câmera impressiona (e incomoda), com o piscar dos olhos constante e a sensação de embriaguez do personagem. É tudo feito quase que em planossequência, numa manipulação brilhante, cujos cortes de montagem são quase imperceptíveis. Além do uso de CGI (computação gráfica) melhor acabado até em hoje, no que se diz respeito a filmes de arte.
A partir do momento que o jovem morre, o filme entra num ritmo mais lento e embriagado, revezando os enquadramentos entre infindáveis (e vertiginosas) zenitais (ângulo no qual vemos a cenas por cima) e over shoulders (atrás dos ombros do personagem). São estes ângulos e sequências lentas que talvez sejam o ponto fraco do filme, porque apesar de serem justificados e muito bem utilizados, cansam não só as vistas, como se repetem demais.
Não há técnica que sustente o encantamento num projeto assim por 160 minutos de película e quando isso acaba, cabe à história reacender o interesse, o que também demora um tempinho. Ou seja, roteiro e técnica andam de mãos dadas na primeira hora, ambos se perdem na segunda e se reencontram para uma sequência final de 40 minutos de pura genialidade.
O Japão das luzes e das cores é o veículo perfeito para as alucinações práticas e teóricas do diretor, que não teve medo de ousar e de causar polêmica através das suas ideias. Se existe reencarnação ou vida pós-morte, Noé a imaginou e simulou da maneira mais crível que qualquer outro filme espiritualista já tenha tentado fazer.
Enter The Void faz um mergulho alucinógeno e depressivo na morte, no que vem um pouco antes e um pouco depois dela. É feito para (e consegue) atordoar a cabeça de alguns e causar repúdio em outros – o que é natural, quando se trata de ideias tão radicais. Um projeto ambicioso, realizado com primor e cuja megalomania é justificada pelo valor artistíco que o filme possui.
Abertura:
(idem, França/Alemanha/Itália/Canadá, 160 minutos, 2009)
Dir.: Gaspar Noé
Com Nathaniel Brown, Paz de la Huerta
Nota 9,0